Correntes presenciais é “um ato de coragem” da Póvoa de Varzim.
A necessidade de grandes líderes, de pessoas que sabem o que fazem e como conduzem o mundo é urgente nos dias de hoje no mundo – “o século XXI não tem produzido grandes lideranças”. Esta foi uma reflexão deixada pelo jornalista João Gobern em entrevista à Norte Litoral Tv, no segundo dia do Correntes d’Escritas, dia 24, o dia em que começou a guerra na Ucrânia.
Acordávamos ontem com essa notícia, enquanto a manhã aqui no Cine-Teatro Garrett era passada de forma calma e serena, ouvindo os escritores da Mesa 3, a propósito da canção “A mi manera” interpretada pelos Gipsy Kings.
A Mesa não causou grandes contestações do público e Carlos Quiroga, o moderador, até a considerou a “Mesa mais calma da história do Correntes…”
Menos público que o habitual, mesmo para uma sessão matinal, mostrando os tempos de retoma dos contactos e abraços do Correntes, após dois anos de pandemia. Ainda há quem esteja com receio de multidões fechadas num teatro, ainda há quem pense que tem que apresentar certificado de vacinação e considere isso uma complicação desnecessária e nem sai de casa, outros que vinham do estrangeiro ainda têm algumas restrições nas viagens. Sim, mas é preciso retomar, é preciso abraçar…
João Gobern regista que a Câmara da Póvoa de Varzim e a organização do Correntes d’Escritas teve “um ato de coragem” ao anunciar no final do ano passado que o festival literário iria realizar-se presencialmente, quando ainda não se sabia se o desconfinamento iria avançar a este ritmo que avançou. Mas torna-se necessário, de facto, concorda o jornalista, retomar esta experiência única do encontro de escritores com leitores, até porque o Correntes online não “foi a mesma coisa”.
O encontro entre pessoas é “absolutamente fundamental”, mesmo que esta edição seja mais limitada, mas provavelmente, vaticina, as coisas poderão realizar-se de forma mais normal e próxima da “nossa maneira” aqui na Póvoa, onde o jornalista e escritor reside há 15 anos.
Quanto à realidade de uma manhã calma e voltada para a arte e os livros, em contraste com a manhã vivida na Ucrânia, Gobern evidencia que o evento é algo que “nos distrai – sem nos alienar” – e pelo menos nos alivia a cabeça de pensamentos menos agradáveis. “Numa altura em que estamos a sair de uma pandemia, estar à beira de uma guerra, ainda por cima na Europa e com a dimensão que pode vir a ter, é sinal que quem manda não sabe no que se está a meter”. Assim, diz Gobern, “as Correntes são um bom bálsamo”.
À tarde, realizou-se a Mesa 4 sob o mote de “Cavalo Morto”, tema musical de Juan Carlos Mestre. Ivo Machado falou da poesia, “a grande companheira”. Cláudia Lucas Chéu também abordou a ligação da poesia ao som, aclamando “não há belo sem justiça”.
E quando o poveiro José Alberto Postiga começa a falar da sua última campanha como pescador, em que o barco naufragou, levamos um “murro no estômago”. As emoções estão à flor da pele com um relato tão vivo de quem viveu, e relata na primeira pessoa, uma situação empolgante – pela força da natureza – e sombria como o breu em que ficou envolvido o pesqueiro após a falha do motor e o companheiro Isac, que o tratava “como um filho” na faina, ter caído e desaparecido para sempre no oceano bravio.
O autor disse que encontrou Isac, “hoje, na canção de Juan Carlos Mestre e no poema de Ledo Ivo – Cavalo Morto”.
Postiga foi aplaudido de pé e todos tentaram conter as lágrimas. Não refeitos do esforço, intervém Carla Pais, que nos conduz por uma realidade, a que muitos, passa ao lado, diariamente, nas ruas das grandes capitais, como Roma ou Paris, só para citar as cidades referidas pela autora: os SDF ou sem-abrigo. Carla está emigrada em França, onde SDF – Sans Domicile Fixe é uma forma mais suave de designar sem-abrigo.
A autora encontrou no apoio aos sem-abrigo de Paris uma forma de educar os filhos para a solidariedade, a fraternidade e igualdade…porque alguém lhe disse um dia – a tua Pátria é aquela que acolhe e a que te permite dar mundo aos teus filhos. Foi esta a ligação que Carla Pais encontrou a “Cavalo Morto”…
E o público cada vez mais emocionado… ainda com as notícias do dia bem presentes, houve alguém que pediu a palavra para afirmar que se muitos dos líderes políticos mundiais tivessem mais contacto com a arte, a literatura, a poesia e até se assistissem a tertúlias como esta, talvez não estivéssemos a viver os graves problemas atuais.
Angélica Santos